RIOS
E INUNDAÇÕES
Paulo Martins
“Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem,
é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente.” Em um
domingo pela manhã, li essas alusões em um livro de contos, do escritor Mia
Couto. Lia para desafogar os problemas da vida. A leitura, que era para dar prazer, terminou
por afogar-me de vez.
O tempo é um rio que atravessa a
casa – senti um medo muito grande em ler isto. Sei do poder devastador de um
rio. São águas violentas que vão levando tudo: infância, juventude, sonhos,
familiares, amores.
Os
peixes que nadam ao contrário da correnteza são as lembranças – ao invés da
corrente, fui lembrando coisas minhas que o rio já tinha levado. Afundei-me em
meio a tanta saudade desmedida. De repente, a imagem do meu pai foi brotando
não sei bem de onde.
Nossa
casa sempre estava nas encostas, à beira da margem do rio. Meu pai, sapateiro de profissão,
era o barqueiro que guiava nossa casa ao longo do rio. Era quem trazia o peixe
de cada dia e nos dava segurança em meio às tempestades e inundações.
Às
vezes, a enchente vinha um pouco mais forte e a casa começava a sucumbir em
meio às dificuldades, então ele anunciava em voz sisuda: “Tô cansado de falar e
vocês não escutar. Vou sumir desta casa, aí quero ver o que vai ser de vocês”.
E ele sumia mesmo, colocava o chapéu de couro e desaparecia, mas era só por
algumas horas. Dolorosas horas. Deixava-nos a deriva, arrependidos de algo que
não compreendíamos bem. Depois voltava, assumia o barco, e tudo voltava ao
normal. Nessa hora, minha vontade era de abraçá-lo, beijá-lo. Mas faltava
liberdade.
Um
dia as águas do rio vieram pra valer, devastadoras, arrancando tudo pela
frente. Levou meu pai, para sempre. Era uma segunda feira, umas dez horas da
noite. Do hospital, ligaram na casa da vizinha para dar a notícia. Depois, ouvi
meu irmão dizendo a minha mãe “Não teve jeito, o papai acabou de partir”. Senti
falta de ar, afogava-me em meio a um choro silencioso. A vontade era de morrer,
desaparecer, seguir o curso do rio que tinha levado meu pai.
Mas
aí, lembrei-me de minha mãe, pouca escolaridade, sem renda qualquer, precisava
de mim, único filho solteiro. Eu não estava sozinho no barco. Aos dezesseis
anos, teria que assumir o posto de meu pai. O peixe de cada dia seria por minha
conta. Trabalhar e voltar a estudar. Tinha que me preparar para outras
enchentes.
Às
vezes, tenho a sensação de que os vendavais de hoje estão mais fortes, as
inundações parecem ser mais impiedosas, como aquela que me atormentava no
domingo de manhã, enquanto lia para desafogar-me. Mas o problema não é este. As
inundações passadas e presentes possuem forças equivalentes. A diferença é que,
há mais de duas décadas, deixei de contar com o barqueiro que me ensinou a
navegar ao longo do rio.
Paulo Martins é professor e escritor,
pós-graduado em lingüística aplicada na educação.
E-mail:
paulo.linguagens@hotmail.com