terça-feira, 4 de março de 2014

RIOS E INUNDAÇÕES


RIOS E INUNDAÇÕES
Paulo Martins
Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente.” Em um domingo pela manhã, li essas alusões em um livro de contos, do escritor Mia Couto. Lia para desafogar os problemas da vida.   A leitura, que era para dar prazer, terminou por afogar-me de vez.
             O tempo é um rio que atravessa a casa – senti um medo muito grande em ler isto. Sei do poder devastador de um rio. São águas violentas que vão levando tudo: infância, juventude, sonhos, familiares, amores.
           Os peixes que nadam ao contrário da correnteza são as lembranças – ao invés da corrente, fui lembrando coisas minhas que o rio já tinha levado. Afundei-me em meio a tanta saudade desmedida. De repente, a imagem do meu pai foi brotando não sei bem de onde.
           Nossa casa sempre estava nas encostas, à beira da margem do rio.             Meu pai, sapateiro de profissão, era o barqueiro que guiava nossa casa ao longo do rio. Era quem trazia o peixe de cada dia e nos dava segurança em meio às tempestades e inundações.
          Às vezes, a enchente vinha um pouco mais forte e a casa começava a sucumbir em meio às dificuldades, então ele anunciava em voz sisuda: “Tô cansado de falar e vocês não escutar. Vou sumir desta casa, aí quero ver o que vai ser de vocês”. E ele sumia mesmo, colocava o chapéu de couro e desaparecia, mas era só por algumas horas. Dolorosas horas. Deixava-nos a deriva, arrependidos de algo que não compreendíamos bem. Depois voltava, assumia o barco, e tudo voltava ao normal. Nessa hora, minha vontade era de abraçá-lo, beijá-lo. Mas faltava liberdade.
           Um dia as águas do rio vieram pra valer, devastadoras, arrancando tudo pela frente. Levou meu pai, para sempre. Era uma segunda feira, umas dez horas da noite. Do hospital, ligaram na casa da vizinha para dar a notícia. Depois, ouvi meu irmão dizendo a minha mãe “Não teve jeito, o papai acabou de partir”. Senti falta de ar, afogava-me em meio a um choro silencioso. A vontade era de morrer, desaparecer, seguir o curso do rio que tinha levado meu pai.
           Mas aí, lembrei-me de minha mãe, pouca escolaridade, sem renda qualquer, precisava de mim, único filho solteiro. Eu não estava sozinho no barco. Aos dezesseis anos, teria que assumir o posto de meu pai. O peixe de cada dia seria por minha conta. Trabalhar e voltar a estudar. Tinha que me preparar para outras enchentes.
          Às vezes, tenho a sensação de que os vendavais de hoje estão mais fortes, as inundações parecem ser mais impiedosas, como aquela que me atormentava no domingo de manhã, enquanto lia para desafogar-me. Mas o problema não é este. As inundações passadas e presentes possuem forças equivalentes. A diferença é que, há mais de duas décadas, deixei de contar com o barqueiro que me ensinou a navegar ao longo do rio.



Paulo Martins é professor e escritor,
pós-graduado em lingüística aplicada na educação.

 E-mail: paulo.linguagens@hotmail.com

Um comentário:

  1. Belas lembranças num texto que emociona ao nível da lágrimas, ou melhor, das águas que levaram o pai do autor. Obrigada por apresentá-lo a mim, Adaílton. Muito bom.

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